Sem açúcar, com afeto
Mal chegamos a março e parece que janeiro já faz meses. Confiro as anotações das semanas seguintes no bloco de notas do celular. A lista de afazeres cotidianos ainda guarda o rastilho das férias e, aos poucos, a leitura compulsiva de livros e as idas à praia, com seu desregrado comedimento à beira mar, vão se mesclando a um roteiro meticuloso de dieta.
Se fecho os olhos, carboidratos se transformam maldosamente em glicose, como se em bando empesteassem de açúcares invisíveis todo e qualquer alimento. É preciso estar atenta às letras minúsculas nos rótulos das embalagens e forte, em meio a folhas e legumes, mastigando ao menos trinta vezes os versos de Vinicius de Moraes, inspirados por suas limitações gastronômicas.
“Não comerei, da alface, a verde pétala/Nem da cenoura as hóstias desbotadas”, rebeldia lírica de menino mimado que lembra a brincadeira viral que lista versões literárias e cômicas, no estilo de escritores famosos, sobre comer miojo. Só para que conste nos autos, uma porção de macarrão instantâneo, 160 gramas, contém em média 40,02 carboidratos e 0,64 de açúcar.
“Há metafísica bastante em não pensar em nada”, já intuía o esbelto Fernando Pessoa, esse poeta de mil (al) faces. O famélico trocadilho infame se justifica (paciência, caro leitor!) pela necessidade de manter algum humor diante do veto sumário a todos os derivados de trigo. E seguimos, parafraseando o trava-línguas clássico: “três trigos tristes”. No prato, nem um.
Resta, no entanto, um consolo: se não comemos mais o pão de cada dia, estamos livres, em tese, da perspectiva de que ele tenha sido amassado pelo diabo. Bom, nunca se sabe, vai que o capiroto decida picotar tomates, cortar os talos do agrião, fatiar as cenouras. Nunca se sabe. Maria passa na frente na fila da comida a quilo e nos guarda da tentação do fast-food.
Nos primeiros dias do mês, meu alimento tem sido a maresia de um verão sem veraneio, em esboços que também encontro no bloco de notas. São fragmentos de textos, entre marcações de consultas médicas, cronogramas de aulas e prognósticos de hexagramas, que ora me deixam feliz e outras vezes nem tanto. “Difícil é a vida e seu ofício”, já dizia o magro Maiakovski.
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